segunda-feira, 1 de abril de 2013


Essa tal criatura do samba.


Gabi e Souza.
Foto: Maíra Sampaio e Douglas Darzo 

Afilhada musical de Cartola, primeira mulher a integrar a ala de compositores da Mangueira, exímia compositora de sambas de terreiro, de protesto e, claro, dos amores não correspondidos, autora do samba que ficou conhecido como “hino do pagode” e madrinha de boa parte dos pagodeiros de 1990, Leci Brandão é a próxima homenageada do Sibipiruna.
De origem humilde, teve a necessidade de trabalhar desde muito nova. A filha de Dona Leci foi operária, telefonista, carregou marmita e só conseguiu um cargo com remuneração maior após ficar conhecida por participar do programa “A grande chance”, no qual foi considerada a melhor compositora da noite.
Negra e pobre - o que não se configura, necessariamente, como um obstáculo no mundo do samba -, é o fato de ser “mulher de fibra” e de “por a boca no mundo e fazer um discurso profundo” o que caracteriza, sobretudo, sua trajetória pelo mundo do samba e para além dele. 
Nascida em Madureira, mas “verde e rosa de coração”, Leci Brandão adentra no tradicionalíssimo mundo do samba carioca em 1971, quando, convidada por Zé Branco, realiza um ‘estagio’ na ala de compositores da Mangueira. Em 1972 já desfilava na escola como sendo a primeira mulher a integrar esta ala e em 74 concorria em sua primeira final de samba-enredo. Fato este que se repetiu por mais cinco vezes, tornando-se “hexa-campeã de vice-campeonatos”. Infelizmente nunca conseguiu ver sua escola desfilar com um samba de sua autoria.
 A cantora, antes, se apresentou em festivais estudantis do final dos anos 60 e no famoso Teatro Opinião. Neste contexto de resistência à ditadura militar e de uma arte engajada, suas composições, cujo tema era seu cotidiano, ganham o gosto dos críticos: sofrimento, luta e condição subalterna  transformam-se em gritantes canções.
Como compositora contou, protestou, cantou e denunciou a Dona de casa, o Bagulho do amante, a Maria de um só João,o Negro zumbi, a Mistura da raça. Além das musicas destinadas à defesa dos homossexuais como Questão de gosto, Ombro-amigo, Chantagem; não se esquecendo de clássicos como Menor abandonado, Deixa, deixa e Zé do caroço.
Ao receber “sugestões” para abandonar o repertório muito contestador que daria corpo ao disco a ser lançado em 1981 pela multinacional Poligram - dentre elas estariam Zé do caroço e Deixa,deixa – Leci pede demissão da gravadora.  Não se rendendo a “essa gente negligente, quase sempre indiferente à nossa canção” a cantora vive basicamente de seus shows durante cinco anos.  Mas como a “força da dureza não cala o cantor” Leci volta a gravar em 1985, quando Zé do Caroço se consagra, sendo regravado, ainda, nos anos 90 pelo Art Popular e no início dos anos 2000 por Revelação, Seu Jorge e Mariana Aydar.
Esse segundo momento de seu retorno aos discos é também um momento em que Leci passa a priorizar e/ou ser priorizada por São Paulo. Como ela mesma diz, é São Paulo quem a consagra. É a emergência dos grupos de pagodes – que se inicia com o boom do Raça Negra – que restitui o samba aos holofotes em finais de 80. São as parcerias e regravações dos pagodeiros de 90 – Só preto, Sem Compromisso, Sensação, Art Popular, É d+, Pique Novo, os Morenos entre outros - que trazem Leci de volta à mídia, agora, como madrinha e sambista respeitada.
Sem arrogância e problematizando o preconceito, desculpa-se com o poeta, mas defende o samba paulista da Barra Funda, do Bexiga e da Nenê. Afasta-se de críticas maldosas e é humilde ao reconhecer os ganhos que os sambistas tiveram com a chegada dos grupos de pagode dos anos 90: desde melhores condições de trabalho – transporte, camarim, estrutura de som e luz – até o retorno “dos velhinhos” do samba ao rádio e mesmo à mídia – não só ela, mas também Jorge Aragão, Zeca Pagodinho e Almir Guineto são bons exemplos disso. “O que é isso meu amor venha me dizer: Isso é fundo de quintal é pagode pra valer”.
          É assim nossa musa, vivendo e cantando as contradições que alimentam a tradição e a modernidade, o samba e o mundo. Leci Brandão faz da "vergonha, loucura, abre e escancara a verdade, nua sem ser preconceito". No domingo, deixemos a vergonha de lado. Amemos " essa tal criatura que envergonhou a cidade"!





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