Rio de
Janeiro, início do século XX. No princípio, era o samba. E o carnaval. Um, amaxixado,
de Donga, Sinhô, Pixinguinha, Heitor dos Prazeres, João da Baiana e tantos
outros bambas. O outro, com seus Blocos, Ranchos, Sociedades...
No fim da
década de 20, vieram as primeiras escolas de samba, com seu cortejo que
necessitava de um ritmo mais apropriado do que o usual, geralmente ouvido nos
blocos, pra se desfilar cantando e dançando. Ismael Silva disse: “o estilo não
dava pra andar. (...) O samba era assim: tan
tantan tan tan tantan. Não dava. Como é que um bloco ia andar assim na rua?
Aí, a gente começou a fazer um samba assim: bum
bum paticumbumprugurundum”. E foi ao som deste ritmo mais “andável” (na
falta de uma palavra melhor!) que nasceu o samba-enredo.
As
escolas se apresentavam na Praça Onze e em visitas a suas coirmãs, e já
existiam competições entre sambistas, mas começaram a ganhar destaque ao
despertar interesse da imprensa. Em 1932, o jornal Mundo Sportivo promoveu um concurso entre as escolas, por sugestão
de seu diretor e proprietário, Mário Filho. Em 1934, as escolas de samba passam
a fazer parte do carnaval oficial da cidade, recebendo subvenção solicitada
pela União das Escolas de Samba, entidade representativa das mesmas - fundada
neste mesmo ano.
Em suas
primeiras aparições, o que viria a ser o samba-enredo se parecia com o que se
vê nos sambas de partido alto: o povo ia cantando em coro a primeira parte e na
segunda parte havia improvisação, os compositores “repenteando” na avenida. Geralmente,
apresentava-se mais de um samba, de autoria coletiva, sem a menor obrigatoriedade
de atrelar-se a um tema. Por isso, sequer tinha este nome, samba-enredo.
Apontar
o primeiro samba relacionado a um enredo é uma dura missão, a discussão é
polêmica Há vários exemplos ao longo da década de 30 que relacionaram, direta
ou indiretamente, a música ao tema apresentado: em 1933 temos “Homenagem”,
de Carlos Cachaça, da Mangueira e “O mundo do samba”, de Leandro Chagas,
da Unidos da Tijuca; “Teste ao samba”, de Paulo da
Portela, possivelmente apresentado em 1934; “Paz universal”, de Silas
de Oliveira e Mano Décio da Viola, cantado pelo Império Serrano em 1946. Silas
de Oliveira disse ter sido este o primeiro samba composto especialmente para um
enredo pré-estabelecido, uma vez que outras escolas, apesar de terem sambas
relacionados a seu enredo, desfilavam com seus sambas de terreiro. O certo é
que esta relação samba e enredo se consolidou no fim da década de 40, e passa a
ser oficial no regulamento de 1952.
O regulamento
dos desfiles também orientava a feitura do samba-enredo. Desde 1946 havia
perdido seu caráter improvisado, e apesar de estar presente já nos primeiros
desfiles, a temática nacional passa a ser obrigatória no regulamento da
prefeitura em 1947. Essa obrigatoriedade
do caráter nacional parece ter acontecido primeiro nas próprias escolas, cuja entidade
representativa já em 1939 colocou em seu regimento a proibição de “histórias
internacionais em sonhos ou imaginação”.
Na década de
50 passou a ser comum um tipo de samba-enredo que ficou conhecido como lençol: discorria sobre um tema
histórico com riqueza de detalhes, com datas e nomes completos e tinha como
característica básica sua extensão, alguns apresentando 45 versos. O autor que
mais se destacou neste estilo foi Silas de Oliveira, do Império Serrano,
apontado por muitos como fixador deste modelo. Alguns exemplos clássicos do
estilo: “Sessenta e um anos de República” (1951), “Aquarela brasileira”
(1964), “Cinco bailes da história do Rio” (1965), do Império Serrano; “Epopeia
do samba” (1955) e “Chica da Silva” (1955), ambos do Salgueiro.
Este modelo perdurou pelas décadas de 50 e 60.
Na década de
60 iniciou-se um processo que atingiu paulatinamente todas as escolas: ganha
voz e espaço a figura do carnavalesco, geralmente um elementos extra-comunidade,
fato que mudou a concepção estética do desfile, transformou seu aspecto
plástico. Como era de se esperar, a música oficial da festa também acompanhou
estas mudanças.
Foi através da
influência desse elemento estranho à comunidade que a temática negra ganhou
espaço no cenário das escolas. Fernando Pamplona, artista plástico convidado
pelo Salgueiro, apresenta uma sequência de desfiles que retoma a história do
negro, com “Zumbi dos Palmares” (1960), “Chica da Silva” (1963) e
“Chico
Rei” (1964).
Seguindo a
trilha de Fernando Pamplona, seu discípulo Joãosinho Trinta inaugurou, no carnaval
de 1974, uma prática que veio a ser incorporada ao samba-enredo ao longo do
tempo: as temáticas oníricas. O enredo era: “O Rei de França na Ilha de
Assombração”, contando algumas lendas do Maranhão e o sonho de Luís
XIII de França que imaginou como seriam as terras a serem invadidas. E o
Salgueiro sagrou-se campeão com os delírios de João. No ano seguinte, Joãosinho
levaria o Salgueiro mais uma vez ao campeonato, com o enredo “O segredo das minas
do Rei Salomão”, e com ele introduziu um costume execrado por muitos: a
montagem do samba-enredo a partir da junção de partes de sambas diferentes. O
samba costumava ser escolhido pela preferência da escola, principalmente por
suas pastoras, mas ao longo do tempo, sua escolha passou a ser feita através de
concursos internos.
Até então,
existia um consenso sobre quais seriam as maiores escolas de samba: Mangueira,
Portela, Império Serrano e Salgueiro, conhecidas como superescolas, pois estavam
sempre entre as primeiras colocadas. E é mais uma vez Joãosinho Trinta que
modifica o cenário: em 1976, traz para este grupo seleto uma escola considerada
média, a Beija-flor de Nilópolis. Seu enredo “Sonhar com rei dá leão”
falava sobre o jogo do bicho, mais uma inovação temática.
O jogo do
bicho já tinha uma relação de mecenato com as escolas de samba, mas esta se
estreita neste período. Isto, somado junto à ação do carnavalesco, contribuiu
para uma mudança de foco do carnaval, trazendo para o desfile características
de show business, como por exemplo, a crescente grandiosidade e a verticalização
dos carros alegóricos.
Junto ao
processo de consolidação do mercado de bens culturais, iniciado na década de 60
no Brasil, as escolas de samba começaram a ter um público mais amplo, ganhando
destaque na programação turística do Rio de Janeiro, com ampla cobertura da
imprensa escrita e televisiva. Este crescimento também fez com que cada vez
mais houvesse pressão por parte das escolas pela construção de um espaço
exclusivo para o desfile, que de tempos em tempos mudava de endereço.
O samba-enredo
não era um produto de grande destaque na indústria fonográfica. Houve gravações
eventuais, geralmente sambas das quatro grandes (Mangueira, Portela, Império
Serrano e Salgueiro) ou discos temáticos de uma escola, até 1968. Este ano
marcou o surgimento de registros mais organizados de sambas-enredo: o primeiro,
não comercial, feito pelo Museu da Imagem e do Som, com os sambas das escolas
participantes do primeiro grupo; o segundo, comercial, feito pela gravadora
DiscNews, gravado ao vivo na quadra das escolas, intitulado “Festival de sambas Vol I" Mas a
chancela oficial das escolas só aparece em 1970, quando são lançados pelo selo
AESEG, associação representativa das mesmas, os discos do primeiro e do segundo
grupos, pela gravadora Caravelle. O interessante é que neste ano também houve o
lançamento de “Festival de sambas Vol.
III”, e só ouvindo os três discos era possível compor o panorama dos sambas
daquele carnaval. Deste momento em diante, o LP dos sambas-enredo foi um dos
mais tocados nas emissoras de rádio e um dos mais vendidos no Brasil.
Isto
repercutiu na maneira de fazer o samba-enredo, acompanhando a evolução dos
desfiles de uma ordem artesanal pra uma industrial. Curiosamente, foi neste
momento que algumas escolas acabaram retomando a forma mais simples e original
do samba-enredo. Isto pode ser visto, por exemplo, em “Festa para um rei negro”
(Salgueiro – 1971), que tem forma A /B (refrão/estrofe), rompendo com a
tradição dos sambas tipo lençol, estilo problemático para divulgação
radiofônica por seu caráter longo.
Ao longo da
década de oitenta, a venda dos discos de samba-enredo ultrapassava facilmente a
marca de um milhão de cópias, mas a partir de 1993, as vendas começaram a cair.
Neste período consolidaram-se várias características musicais que podemos ver
até hoje no samba-enredo: a aceleração do andamento, a marcialização do aspecto
rítmico, o aparecimento de harmonias mais sofisticadas, mas o aspecto que mais
chama a atenção é o da forma. O estilo lençol deu lugar a uma forma quase
padronizada, recorrentemente A/B/C/D ou A/B/C/D/E, ordenada de forma cíclica. E
apesar de ainda termos hoje sambas lindos e memoráveis, não dá pra não notar a semelhança
entre vários deles...
É certo que a
escola de samba e o samba-enredo hoje possuem um caráter industrial, mas também
é certo que este processo não ocorreu sem a reflexão das próprias escolas sobre
ele. Já foi cantado na avenida... No famoso “Bumbumpaticumbum Prugurundum”:
super escola de samba S.A./ super
alegoria/ escondendo gente bamba/ que covardia (Império Serrano - 1982) e
em “O
samba sambou”: o mestre-sala foi
parar em outra escola/ carregado por cartolas do poder de quem dá mais/ e o puxador
vendeu seu passe novamente/ quem diria, minha gente/ vejam o que o dinheiro faz/
é fantástico/ virou Hollywood isto aqui/ luzes, câmeras e som/ mil artistas na
Sapucaí. (São Clemente - 1990).