Por Thiago Fernandes Franco: Peixe.
Madalena do Jucu é sem dúvida uma das minhas mais remotas memórias musicais. Eu não devia ter cinco anos quando já sabia a letra inteira e passava o dia a cantá-la mais minha irmã, aprendendo que apesar de toda a cagação de regra dos nossos pais, eles passaram pelas mesmas coisas, viveram os mesmos amores e cometeram os mesmo erros que nós viríamos – muitos anos depois – a cometer. Pode soar estranho, mas esse fatalismo era muito confortante e marcou definitivamente o meu modo de sentir e o de pensar. Acho que não seria exagero, mesmo, creditar o meu profundo desacordo com as relações de autoridade a esta potente memória musical que desde então me acompanha.
Ao lado de Vinícius, Chico e Adoniran, Martinho da Vila compõe a santíssima trindade daqueles que partilharam todo o meu processo educacional com a minha família, tanto quanto com os meus amigos e com os meus professores. Foi com eles todos que aprendi a viver as coisas. E cumpre ressaltar que o Martinho sempre foi bastante diferente dos outros três, e é mesmo com muita forçação de barra que se forma essa “trindade”. Mais ou menos aquela forçação de barra com que o povo do além-mar precisou se virar pelas bandas do lado de cá, naquele tal de sincretismo que o Martinho cantou desde sempre com aquele seu jeito desapressado... com aquela cadência lenta... com aquele jeito simples e natural de cantar como se o samba viesse de dentro do coração com toda a sua verdade.
Aquele coro em resposta daquelas moças negras – que depois descobri suas filhas; aquela pimenta toda especial daqueles sambas abaianados; aqueles sambas de roda, de enredo (Sambar na avenida de azul e branco é o nosso papel, mostrando pro povo que o berço do samba é lá em Vila Isabel)... pagodes... aqueles calangos da zona rural fluminense tocados com sanfona e contrabaixo... que não se sabe se é mais samba ou mais baião, mas que é só botar as mãos nas cadeiras e sair dançando... Cagando e andando pros rótulos...
E aqueles sambas de amor, sensuais, viscerais, dilacerantes... que de tanto ouvir já parece que já se viveu.. e que quando se vive parece que já é mais fácil de suportar...
Aquela batucada da umbanda, do candomblé e da macumba com galinha preta e azeite de dendê... Aqueles sinos da igrejinha a fazer belémbléblam.
Toda aquela força da negritude que se afirma do alto da sua pureza, sem revanchismo, com toda a sua verdade e a sua potência que somente na adolescência eu fui descobrir em bambas do calibre de Zé Keti, Luis Carlos da(s) Vila(s) e toda a gente da Quilombo comandada pela altivez do Mestre Candeia.
Aquele modo tão simples e tão forte. Aquela Pretinhosidade – pra ficar tudo em casa de bamba mais uma vez.
O primeiro sambista a cravar um milhão de cópias – ainda por cima num disco feito todo de improviso... Na época eu conhecia apenas uma cópia de cassete que o Tio Mário – muito antes de me levar ao Canecão cantar junto com o Martinho – gravara para o meu pai. Provavelmente sem saber o quanto tudo isso viria a nos aproximar bem mais no futuro.
Não pretendo me estender sobre aquela sacanagem toda de que o Martinho é um vendido porque supostamente comercial de tão tocado. Vou reproduzir noutro poste um artigo do Cabral para o Pasquim no qual ele fala tudo o que eu tenho a falar sobre essa gente babaca que não critica a desigualdade nem os pressupostos de uma sociedade a cada dia mais desigual e mais babaca, mas que olha com olhos de desprezo qualquer ascensão social de qualquer preto.
Dizem que eu sou um burguês muito privilegiado...mas burgueses são vocês... eu não passo de um pobre coitado, mas quem quiser ser como eu vai ter é que penar um bocado.
Pra voltar ao que é gostoso, ao que o samba é na sua forma mais porreta, naquele ensinamento coletivo que educa porque partilha e que comunga porque caleja... Nunca é demais lembrar o grande ensinamento que o mestre cantou menos do que viveu: É devagar, é devagar, é devagar é devagar devagarinho... Devagarinho é que a gente chega lá, se você não acredita você pode tropeçar.
E termino cá com as risadas compulsivas das minhas filhas toda vez que eu canto essa pequena fábula em que o dedão xinga o cara... lição de vida.
Como aprendi com papai, na minha casa, todo mundo é bamba, todo mundo bebe, todo mundo samba.
Viva o Martinho da Vila, o pai da Alegria!
Viva o samba e viva a batucada que sempre será dessa gente de cor e de quem mais souber chegar.
E viva a criançada porque o tal do samba fica muito mais bunito na rua do que em qualquer museu.
"Canta Canta, minha Gente
Deixa a tristeza pra lá.
Canta forte, canta alto,
Que a vida vai melhorar.
Que a vida vai melhorar"
No Dia Nacional do Samba (02/12/2012) o Projeto de Samba Sipipiruna terá o orgulho de homenagear este grande baluarte do samba, Martinho da Vila, a partir das 15 horas, no Bar Esquina 108.
É só chegar !!!!!